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Case Empresarial
Estudo de Caso do Assédio Moral por Racismo

O caso refere-se a prática de assédio moral por um gerente de vendas contra sua secretária, de 20 anos,mulher, negra e pobre.

O relator desse processo revela, de início, tratar-se da “... mais grave sucessão de transgressões à dignidade dos trabalhadores que tivemos notícia ao longo de 12 anos atuando no Ministério Público do Trabalho”, constatando a ocorrência efetiva do assédio moral naquele local de trabalho e reconhecendo o efeito perverso desse comportamento sobre as pessoas envolvidas.

A história de Jucimara, portadora de deficiência física em um dos braços, inicia-se em julho de 2002, período em que começa a exercer atividades profissionais na Frevo Brasil, indústria de refrigerantes de Salvador (BA). O seu ingresso naquela empresa deu-se por intermédio da Associação dos Portadores de Deficiência da Bahia – ABADEF, na função de auxiliar-administrativo, lotada no setor de produção. Nesse período, não manifestou nenhum tipo de ocorrência de maus-tratos no ambiente do trabalho porque mantinha relações cordiais e respeitosas com seus superiores.

A partir de fevereiro de 2003, é transferida para o setor de vendas como secretária, para o exercício de tarefas vinculadas ao gerente daquela área. O primeiro contato com o novo superior é marcado por diálogos recheados de piadinhas e diretas alusivas a sexo, como por exemplo: se a secretária sabia “pagar boquete”; “se era do seu conhecimento o teste de profundidade de vagina”; ouviu, ainda, que “a sua deficiência não estava no braço, e sim na vagina, que era muito grande”, conforme depoimentos à Delegacia Regional do Trabalho na Bahia e à Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, em 28 de maio e 08 de julho de 2003, respectivamente.

Apesar do estranhamento da conduta moral e ética do superior hierárquico, Jucimara permaneceu por mais alguns meses exercendo suas funções naquela empresa, onde presenciou outras atitudes discriminatórias, extensivas também a outros empregados, inclusive aos vendedores externos. Esses colegas de trabalho eram obrigados a se expor ao ridículo, como usar saia quando não atingiam a cota de vendas estabelecidas pela empresa, além de manusear um pênis de borracha, oferecido pelo chefe, o gerente de vendas do setor, durante as reuniões matinais, conforme depoimento de uma das testemunhas da Ação Civil Pública, em 13 de outubro de 2003.

Esse tipo de constrangimento, utilizando os vendedores como platéia, para Barreto (2000) tem um único objetivo: impor o controle a todos, manter a ordem no ambiente, reafirmar a autoridade do agressor, manipular o medo e aumentar as vendas do refrigerante.

Tais atitudes, entretanto, revelam que há, na verdade, uma busca de poder pelo agressor e o mascaramento da sua incompetência no trabalho, com resultados operacionais obtidos, exclusivamente, sob pressão e ameaças (HIRIGOYEN, 2001).

Percebe-se que a prática de procedimentos humilhantes contra os empregados era norma da empresa, representada por aquele gerente, que incorpora o papel de senhor absoluto da situação, com visível abuso de poder e com uma visão microscópica do ser humano trabalhador (TAYLOR, 1963), tanto que coloca a sua secretária como prêmio para vendedores e compradores do refrigerante: “Você não pega essa neguinha aí, não?”, dizia o chefe aos seus ouvintes, quando dos encontros diários no setor de vendas. Jucimara afirma também ter sido apresentada como uma espécie de “vale-foda’’ para vendedores e compradores, conforme dados extraídos de entrevista concedida ao jornal A Tarde, de dezembro de 2003.

Além das ações descritas, a empregada declara em entrevista ao jornal A Tarde, de 20 de dezembro de 2003, que “teve as nádegas queimadas com um isqueiro”, também pelo mesmo agressor.

Outro episódio, responsável pela saída provisória de Jucimara daquela empresa, demonstra a incontrolável ação de mando e desmando do seu chefe. Em abril de 2003, a empregada foi trancada em uma sala com o gerente de vendas e mais outros quatro homens, compradores do refrigerante, com o objetivo de servir de objeto sexual para o grupo. As tentativas de abuso sexual ocorreram quando esse grupo a forçou a retirar suas roupas, mesmo gritando “que não ia fazer aquilo”, conforme atesta em matéria veiculada no jornal anteriormente citado. Quando tentou fugir daquela situação, ao abrir a porta da sala leva uma queda, caindo embaixo da mesa do computador, causando-lhe traumatismo no braço e na boca. As seqüelas físicas são confirmadas em laudo médico, obrigando o seu afastamento por licença-saúde pelo período de cinco meses, originado por “sinovite traumática de punho e mão esquerdos”, agravando a sua deficiência física, registrado em Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), de 23 de abril do mesmo ano. Tais fatos são objeto de denúncia ao Departamento de Crimes Contra a Vida, da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, conforme guia de n. 0802003003996, de 08/07/2003.

Quando retorna ao trabalho, em outubro de 2003, é demitida, apesar da ilegalidade do ato, pois se tratava de afastamento por acidente no local de trabalho, com garantia de permanência no emprego durante a fase de estabilidade, prevista em legislação trabalhista pertinente.

Nessas ocasiões constrangedoras, era raro surgir um colega para defendê-la, mas comum os “sorrisinhos” da platéia presente. A administração da empresa, quando comunicada de tais fatos pela vítima, preferia ignorar sua ocorrência informando que não gostava de “fofocas” nos corredores da fábrica, conforme consta nos autos do processo.

A colocação de Jucimara à disposição de homens como se fosse um objeto sexual, além de denegrir sua imagem como mulher, demonstra claramente as atitudes de racismo e de diminuição da empregada como pessoa, quando o gerente de vendas menciona o termo “neguinha”. Nesse momento, as figuras do patrão branco e do empregado negro retomam a sistemática desumana do período escravocrata brasileiro, em que a cor da pele era motivo de submissão e renúncia aos direitos do ser humano, tão bem retratados por Freyre em Casa-Grande & Senzala (2002).

Os resquícios de crueldade no tratamento dado aos empregados da Frevo remontam o comportamento dos senhores de engenho e levam-nos a aproximar o papel daquele gerente de vendas ao personagem de Machado de Assis (2001) Brás, quando este colocava Prudêncio, filho de escravos, à disposição de todas as suas maldades e perversidades, exigindo obediência cega aos mandos e desmandos, sem direito a reclamação.

O denunciado, o Sr. Rogério, em depoimento ao Ministério Público do Trabalho (BA), em 01 de julho de 2003, tal qual a classe dirigente acostumada ao mutismo brasileiro (DAMATTA, 1997), nega todas as acusações, afirmando: que nunca entrevistou a senhora Jucimara; que não tem conhecimento de ocorrência de assédio sexual na empresa; que nunca esteve a sós com a denunciante; que jamais tratou a denunciante de forma desrespeitosa, sequer no que se refere a gracejos ou brincadeiras, mesmo porque o curto período de permanência da denunciante no setor não proporcionou uma maior intimidade; que não fez nenhum comentário a respeito dos dotes físicos da denunciante perante empregados do setor de vendas.

O agressor declara também ter conhecimento de que a denunciante havia mostrado os seios aos vendedores no local de trabalho. Este fato, por si só, chama a atenção porque os administradores daquela empresa não tomaram nenhuma providência coercitiva quanto à postura de Jucimara. Esse silêncio, entende-se, demonstra que se tal atitude ocorreu, havia a conivência dos administradores com tal comportamento, considerado inadequado ao padrão ético de qualquer organização. Daí surge a pergunta:
Por que tal fato não foi investigado?

A resposta, óbvia, leva-nos a entender que a postura administrativa daquela empresa era conivente com as atitudes reprováveis do seu gerente de vendas. Esse laxismo administrativo, conforme Hirigoyen (2001), é reflexo da preocupação maior com o “cumprir metas” e “alcançar resultados”. Apurar os métodos para se obter lucro significava, naquele contexto, reconhecer os equívocos da política de recursos humanos do local de trabalho e apresentar atestados de incompetência do gerenciamento de pessoas. Além disso, faz parte do jogo do assédio moral, conforme Hirigoyen (2001) e Moura (2002), inverter os papéis, espalhando-se inverdades sobre a vítima, de modo a mascarar a perversidade do agressor, e com isso procurar um meio para se livrar daquele trabalhador “inconveniente”, de preferência com uma má reputação.

Dentre as testemunhas apresentadas pelo denunciado, conforme constam no corpo do processo, uma delas confirma as agressões praticadas contra Jucimara. As outras, porém, não afirmam categoricamente todas as falas da denunciante, deixando entrever que apenas “ouviram falar” dos acontecimentos, o que pode ser considerado “normal” nessas circunstâncias, pois dificilmente os trabalhadores daquela empresa, em depoimentos, colocariam em risco seus empregos para esclarecer, de fato, o que acontecia naquele ambiente de trabalho, apesar das fortes evidências de assédio moral. Por parte da denunciante, foram ouvidas outras testemunhas, ex-empregados da citada empresa, que confirmaram as ações de maus-tratos afirmadas por Jucimara, inclusive esclarecendo que o gerente tinha o hábito de “fazer brincadeira com isqueiro queimando as nádegas das empregadas”.

A defesa do denunciado mantém a tese de que Jucimara comportou-se inadequadamente no ambiente de trabalho e que, por essa razão, adotou a inversão dos fatos para fortalecer os seus argumentos, apesar de ele ter deixado claro que a direção da empresa não apurou nenhuma informação sobre a conduta da empregada. Percebe-se, mais uma vez, a inversão de causa e efeito do assédio moral: a vítima torna-se o problema da organização!

Pelos relatos, segundo Moura (2002), esse caso se configura como um abuso de autoridade, com manipulação perversa dos subordinados pelo gerente de vendas, com práticas comportamentais condenáveis e antiéticas, com reflexo de uma demonstração de poder e uma busca constante de adquirir elevada auto-estima com o exercício da sua tirania, mas focando um resultado: agradar seus superiores com o cumprimento de metas.

Percebe-se, portanto, a reunião de vários fatores para a consumação do assédio moral: a desumanização no trato com os empregados; a onipotência do agressor; a tolerância e cumplicidade dos responsáveis pela empresa com as ações do gerente de vendas (FREITAS, 2003; HIRIGOYEN, 2001).

A herança cultural brasileira do coronelismo, aliada ao prazer de diminuir o subalterno e de impor o medo (DAVEL; VASCONCELOS, 1997), é presenciada nos depoimentos da vítima e percebida nos relatos das testemunhas. A tentativa de sair daquela situação sofre uma tentativa de imobilização dessa natureza quando o agressor afirma: “Você é negra, pobre e ninguém vai acreditar em você!” Os termos registrados na entrevista são resquícios também do regime escravocrata do Brasil: não se reconhece até hoje, no universo do trabalho, a liberdade das pessoas pobres, principalmente as de origem negra. A expressão citada deixa claro seu intuito: a subserviência incondicional de Jucimara ao seu chefe.

A justificativa para suportar tamanha humilhação é expressa por ela da seguinte maneira: “Não foi o medo da exposição, mas o de perder o emprego”, conforme entrevista publicada no jornal A Tarde, de 20 de dezembro de 2003. Essa situação, prevista por Barreto (2000) e por Hirigoyen (2001; 2002), tem o poder de paralisar o indivíduo, deixando-o frágil e transformando-o em presa fácil para gerentes da espécie admitida pela Frevo. Mesmo assim, em pleno curso do contrato de trabalho, Jucimara não se deixa abater, iniciando uma trajetória de denúncias sobre a sua jornada de humilhações (Barreto, 2000), dentre elas, queixas por assédio sexual e discriminação racial, em 25 de novembro de 2003, na 5ª Vara Crime da Comarca de Salvador. Tal postura reafirma que Jucimara não tolerou o medo nem se submeteu às regras e normas imorais daquela empresa: revelou-se mulher, negra, pobre e livre! Se não disse, acreditamos ter pensado: “Quem você pensa que eu sou?”.

A cor da pele de Jucimara, sua dependência econômica do emprego e o fato de ser considerada pobre pelo seu superior hierárquico transformaram aquela ante-sala de secretária em senzala e, supostamente, deram ao seu “senhor chefe” a prerrogativa de contemporizar a escravidão negra na Bahia, ao coisificar essa trabalhadora. Jucimara tornou-se uma “coisa”, um “isso”, e não um “eu” (ALMEIDA, 2003). O assédio moral, conforme Hirigoyen (2001; 2002), configurou-se como perseguição em função da cor daquela empregada e da crença de que a subordinação sem limites é inerente à dependência econômica do empregado aos empregadores.

Para o Ministério Público do Trabalho, de acordo com o processo trabalhista em andamento: E o mais insidioso de tudo é constatar, com muita tristeza, que a pessoa responsável pela prática de tamanhas barbaridades gozava e goza da confiança da empresa-ré, tanto que ao longo do procedimento investigatório não foi trazida qualquer prova a respeito de eventual tentativa do empregador tendente a paralisar, de imediato, as atitudes criminosas do seu gerente de vendas.

Esse fato é confirmado pela assessoria de imprensa da empresa ao jornal A Tarde, em 19 de dezembro de 2003, cuja nota afirma que: “confia na seriedade e integridade do gerente de vendas e que a apuração vai provar que as acusações são falsas”. Além disso, esclarece que o agressor goza de “fantástica reputação” e que as acusações provêm de ex-funcionários magoados, demitidos em processo de reestruturação administrativa. Diante da incontestável presença do assédio moral no presente caso, para sua coibição, somos favoráveis ao entendimento descrito por Guedes (2003, p. 112): “Admitese a inversão do ônus da prova, revertendo para o agressor o encargo de provar a inexistência do assédio”.

A ação pública citada encontra-se em tramitação na Quarta Vara do Trabalho de Salvador, com pedido de condenação pela ocorrência de dano moral coletivo, no valor de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), reversível para o FAT (Fundo de Amparo do Trabalho).

Comentários Finais

As relações de trabalho em nosso País são impregnadas pela falsa idéia de que o subalterno é obrigado a se submeter a uma forte depreciação como ser humano, aceitando como condição normal de trabalho toda espécie de maus-tratos. A agressão física ao indivíduo desapareceu com o tempo. Porém, uma outra forma de atingir o bem-estar do trabalhador – o assédio moral – surgiu, só que mais sofisticada e devidamente adaptada à exploração do trabalho humano na contemporaneidade, transformando o local de trabalho numa “arena” de conflitos, divergências, perseguições, sofrimentos e desilusões.

Os efeitos nocivos do assédio moral na vida do trabalhador são o adoecimento no trabalho, o desemprego ou a aposentadoria; ao empregador, outros tipos de prejuízo, como baixa produtividade, queda na lucratividade, absentismo, reputação da organização e ônus por indenizações trabalhistas.

O agressor atinge o seu objetivo quando expulsa do ambiente do trabalho aquela pessoa que não suportou as primeiras agressões ou quando transforma o trabalhador que não rescindiu o contrato trabalhista num indivíduo doente, improdutivo e desnecessário ao ambiente produtivo da organização.

O caso relatado proporcionou a identificação do assédio moral por racismo, na ação civil pública, por danos morais, e esse processo jurídico permitiu – por meio dos depoimentos ali registrados – a reconstituição histórica das etapas de humilhações trilhadas pelos empregados naquela organização e, ainda, perceber que as técnicas de gestão, por si sós, não geram o assédio moral, pois este continua vinculado a atitudes de caráter pessoal do indivíduo com poder dentro da organização, cuja prática administrativa leva-o, rotineiramente, a perseguir indivíduos até mesmo usando os pretextos de incrementos de produtividade dentro da lógica competitiva de mercado.

Referências Bibliográficas

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Simone, Jaqueline, Franciele, Josiele, Bruna
Assédio Moral - PUC-PR